Mais uma vez a União demonstra desprezo ao pacto federativo. Sempre que chamada a conciliar conflitos envolvendo a elevada carga tributária, a União não teme em fazê-lo ao custo de recursos estaduais e municipais. Foi assim na elevada crise de 2008 e agora na crise instalada pela paralisação dos caminhoneiros.

Em 2009, a União optou por reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre automóveis, eletrodomésticos da linha branca e bens de capital. Também criou novas alíquotas de Imposto de Renda (IR). Tocou justamente nos dois impostos representativos da maior receita dos Estados e dos Municípios, pois compõem, dentre outros, o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). O IR é repartido em 49% e o IPI em 59% com Estados e Municípios. Nesse impostos, a União fica em média com a metade de sua receita e por isso não hesita em reduzi-los quando é “obrigada” a diminuir a carga tributária.

Agora faz o mesmo em relação à Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre Combustíveis (CIDE-Combustíveis) sobre o óleo diesel. Dentre todas as contribuições, espécie de tributo que a União tem competência exclusiva para criar, com raras exceções, a CIDE-Combustíveis é a única contribuição de receita compartilhada. Todas as outras contribuições são de receita exclusiva da União, a exemplo do PIS, COFINS, CSLL, INSS, SAT, dentre outras. E esse compartilhamento se deu após árdua luta municipalista.

De início, a Emenda Constitucional (EC) n. 42/2003 inseriu o inciso III no art. 159 da Constituição Federal e fixou um repasse de 25% da arrecadação do tributo. Deste montante, 75% eram destinados aos Estados e Distrito Federal e 25% a seus Municípios. Após, com muita insistência dos prefeitos e governadores, a EC nº 44/04 alterou o percentual do tributo a ser distribuído para 29%, mantendo a partilha de 75% do montante para Estados e Distrito Federal e 25% para os Municípios.

Embora sendo uma pequena receita, tinha a sua relevância, mormente no início da sua instituição, quando o Governo Federal cobrava valores maiores. No entanto, desde que passou a ser repartida, a União “perdeu” interesse na sua cobrança. Ainda em 2001, a CIDE chegou a custar R$ 280 por m3 de gasolina e R$ 70 por m3 de diesel, sendo paulatinamente reduzida por outros decretos até ser absurdamente reduzida a zero em 2012. Em 2015 foi restaurada em R$ 100,00 por m3 de gasolina e R$ 50,00 por m3 de diesel. Agora, o governo decide reduzir a zero novamente a sua cobrança para o óleo diesel.

Deixando-se de lado a razão justificadora da redução, o certo é que mais uma vez a União “faz cortesia com chapéu alheio”. Por menor que seja a receita compartilhada, trata-se de recurso importante para Estados e Municípios já combalidos por quedas constantes de receita. Apenas a título de exemplo, o Município de Itabuna/BA tinha previsão de receber R$ 334.000,00 desse tributo em 2018. Com a medida tomada, haverá redução drástica no repasse.

E nem se cogite buscar no Judiciário o reparo do impacto financeiro. Isto porque, quando instado a se manifestar sobre a redução do IPI e do IR em isenções bilionárias, o Supremo Tribunal Federal afirmou ser constitucional a redução das suas alíquotas, pouco importando o impacto nas contas municipais e estaduais, pois tratam-se de impostos de competência da União, muito embora de receita compartilhada (RE 705.423, julgado em 2016). Para o STF, os municípios e os Estados só têm direito a um percentual daquilo que foi arrecadado. Portanto, se não houve arrecadação, não há o direito à participação. Igual sorte haverá no caso da CIDE-Combustíveis acaso seja judicializado.

Com isso, a União intensifica a cobrança nas contribuições que mais arrecadam, PIS e COFINS, nada diminuindo na sua incidência sobre os combustíveis, até porque toda a sua receita só tem um destino: os cofres federais.

Agindo assim, desfigura-se mais uma vez a federação brasileira, e a propalada autonomia financeira dos entes federativos, prevista na Constituição Federal, aos poucos resta mitigada por medidas que concentram os recursos financeiros na União, e o pouco que é repartido com Estados e Municípios torna-se justamente o alvo da União para a prática de políticas desonerativas.

* Dr. Harrison Leite é professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Ufba

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